quinta-feira, 23 de novembro de 2006

“Efeito borboleta (The butterfly effect – EUA – 2004)"


“O acaso é, talvez, o pseudônimo de Deus, quando não deseja assinar.”
Theophile Gautier

Quando Evan Treborn era garoto seu médico recomendou que ele registrasse em diário os momentos da vida. Era uma medida contra insistentes lapsos de memória atribuídos a uma misteriosa doença.

Da infância até a o ínício da maturidade Evan teve uma vida de superação e nela os diários desempenharam importante papel. Os diários sempre estiveram com ele, mas depois de seis anos sem nenhum lapso, Evan se dá conta de que não se lembra claramente de um certo fato.

Ele recorre então a pessoas de seu passado para estabelecer esse ponto na memória, mas o remexer nos fatos mais antigos desencadeia uma tragédia que faz com que Evan mergulhe em seus diários em busca da resposta.

O mergulhar nas memórias desencadeia o impensado e agora o que resta a Evan é apenas busca em meio ao caos.

Essa na verdade é a primeira porção que se segue depois dos dizeres “Algo tão pequeno como uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do mundo.”, pinçado da Teoria do Caos de Edward Lorenz pelos roteiristas e diretores Eric Bress e J. Mackye Gruber, roteiristas de “Premonição 2 (Final destination 2 – EUA – 2003)”, no filme “Efeito borboleta (The butterfly effect – EUA – 2004).

Muita gente viu e gostou. A crítica não detestou e viu até um interesse no modo como se trabalha a questão da perda de memória, por isso conseguiu traçar certa identificação com os cineastas pelos quais a língua da crítica vive cada vez mais engatilhada pra disparar “Gênio!”.

Não se pode negar que o filme chama a atenção em alguns aspectos, e que agrada a quem nunca viu ou se desacostumou a aparentes ousadias no roteiro. Mas é um filme que não se arrisca a muita coisa. Se há um cuidado ali é de seguir o sacrossanto roteiro; trabalhar cenas, elenco, fotografia, som só é prioridade num nível de obediência ao roteiro, à deusa estória. Fora o roteiro, tudo é risco. O básico é que é confortável. Pena não ter cinto de segurança quando se caminha pela rua.

A realização se dá num beabá cinematográfico, e isso é bom para os realizadores, pois previne o filme de soar tatibitante. Ele é seguro e quem é espectador pode ver tranqüilo, pois não requer formação um pouco mais aprofundada em audiovisual. É assim para não gerar nenhum empecilho para a boa compreensão do roteiro, o cofre do valioso tesouro que chamam de estória.

Valioso por que é na estória, ou melhor, em quão imaginativa ela pode ser, é que os grandes estúdios de Holywood vêem uma tábua de salvação para seus negócios, e se essa tábua der ao público o que ele almeja, melhor tábua será.

Esse novo cinema que vem surgindo em Holywood, em que parte da matéria-prima cheira a teen, visa um público que é visto como tendo a necessidade de uma nova educação cinematográfica, o mesmo que vai consumir a criativa Holywood daqui a alguns anos. Indústria que conforme a visão de seus patriarcas, para assegurar seu futuro, precisa transpirar criatividade em tudo, na técnica, mas principalmente no roteiro, que deve conter tudo o que há de melhor direto das sessões de brainstorm. O filme holywoodiano é desde já aquele que impõe a ordem sobre o caótico universo das idéias, e, portanto, onde a ilusão da imaginação que é fértil, e por isso inteligente, atua cada vez mais intensamente.

Reflexo involuntário do que Holywood aspira para seu futuro, e desse jeito de si mesmo, é também no que resulta “Efeito borboleta”.

“Efeito borboleta” quer ter um caráter de protótipo. Protótipos são concebidos no campo dos projetos, são pensados como modelos que originarão outros, e por isso possuem sobre si muito mais carga intelectual que os que dele derivam. Ainda que não exista muita separação entre teoria e prática, pode-se dizer que ele tem muito mais de teoria do que de prática. Não é estranho que o filme seja todo apoiado na porção projeto do cinema e na Teoria do Caos.

A Teoria do Caos de Edward Lorenz trata da previsão matemática do acaso, pela ação e a interação de inúmeros elementos de forma aleatória. O filme optou pela parte inicial da teoria, o tal Efeito Borboleta de onde vem o título do filme, e que se refere à impossibilidade de uma previsão perfeita.

O filme até ganha um alargamento quando se visita o conteúdo incial da teoria de Lorenz, pois as ações de Evan ganham a justificativa de que, sob o comando de alguém humano, incapaz de prever completamente o efeito de suas ações, as constantes intervenções na realidade se tornam pertinentes.

Por outro lado, o filme, ao optar por evitar a incorporação do randômico e do acaso presentes no restante da teoria, sempre próximos das ações humanas – e que provocam efeitos que escapam ao controle pela simples incapacidade humana de monitorar o todo – confere ao protogonista um aspecto também divino que por várias vezes sobrepõe o humano. É com se Evan fosse um deus desprovido de ubiquidade e com onisciência defeituosa; ele pode tudo, mas seu motor é o desejo e a teimosia.

Evan, como deus defeituoso, se coloca acima do acaso. E ignorando o acaso se diz humano quando todas as suas ações se assemelham à divinas, e vice-versa. Como essa não é uma ocilação que contribui para o personagem, pois um olhar mais acurado vai sempre perceber que há algo em descompasso (a atenção do espectador é presa no filme apenas porque nem ele nem Evan conseguem antecipar as características da próxima alteração de realidade), o resultado não é outro se não um constante tom de absurdo desde que Evan descobre do que é capaz.

Em “Efeito borboleta” o absurdo pende para o ridículo, não para o fantástico, que se aliementa da realidade; o absurdo precisa estar acima da realidade.

Este absurdo que salta aos olhos vai desde a insatisfação egoísta do que acontece ao eu do protagonista, até a insatisfação em relação ao outro. E entre os dois pólos está: à mulher desejada por todos num ambiente de aceitação moral promove amor, num ambiente de recriminação moral promove lamento e degradação; a rejeição de amizades que não se emparelham ao ideal de socialmente aceito ou flertam com ou se insiram no marginal; na realidade desejada e a todo custo buscada o eu do protagonista não cabe doente, mutilado, louco, mas pode se acostumar e entender como normais certas prerrogativas de posição quando aprecia esta; o sacrifício do que o protagonista ama, em nome do bem do que ama, mas sem sofrimento profundo, pois o sofrimento de verniz altruísta dele ao menos lhe traz uma recompensa. Ou seja, depois que a guerra acabar e o mundo for nosso, todos reconhecerão o valor dos campos de concentração – diria Evan se num filme ambientado na Segunda Guerra.

A jornada do herói-tiranete Evan está imersa no contraste que anda de mãos dadas com o repúdio a tudo o que é externo – repúdio a tudo e todos até que Evan estabeleça sua vontade. Nesse contraste em que o protagonista é perfeito e o resto não, o exterior é lugar impuro e precisa urgentemente de mudança, mas esta só pode vir através do interior de Evan, em que ele mesmo é o agente da mudança. Nada serve, a não ser o protagonista.

Olhando Evan do lado de fora de sua mente, tudo em “Efeito borboleta” assume uma outra configuração, da mesma maneira que a concepção de mundo de Evan é invertida. Fora dessa ficção labiríntica que a todo o tempo seduz (chantageia?) o espectador com a saída, aqui no dia-a-dia da vida dos espectadores, as coisas acontecem diferente. Não me refiro ao fato de ninguém ter o poder sobrenatural de Evan.

Fora do filme o que ocorre é que, se há algo na realidade do ser humano que o desagrada, ele interioriza o problema, gesta idéias e depois age. Isto é, a mudança tem início interiormente, para depois atingir a realidade pelos atos, e aí sim verificar a mudança na realidade.

Em “Efeito borboleta” protagonista e filme entendem por ação tudo o que acontece internamente, seja no campo das memórias ou do desejo, e isso basta para afetar a realidade externa, entendendo ser mais do que suficiente para tudo apenas a ação inicial interna.

Segundo o filme é bem possível que as próximas revoluções no mundo se dariam assim: cada pessoa agindo em si mesma, só em si, e ainda que façam pelos demais apenas o que cada uma considera o melhor, o que importa mesmo é que cada um está fazendo algo por alguém. E isso já bastaria.

Tudo isso também explicaria o fato de muita gente ter apreciado um filme cinematograficamente médio, problemático nas posturas diante das questões que suscita. Problemático, pois uma vez detectada uma característica letárgica, digamos, em seu público, fez dela trampolim para a aceitação do filme e deste apenas mais um produto holywoodiano em que espectador é público-alvo, desde o início da realização fílmica.

Reflexo involuntário do que muita gente deseja intimamente, e que expõe uma falsa idéia e uma preguiça em relação ao que se refere à atividade transformadora, é também no que resulta “Efeito borboleta”.

Um filme que abriga um ponto de ancoragem e identificação para uma faceta burra da sociedade, ponto que se mascara de ação altruísta, e que ao mesmo tempo é um termômetro de insensibilidade e estupidez dela.g


Sobre Teoria do Caos e Efeito Borboleta:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_caos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_Caos#Efeito_Borboleta
http://pt.wikipedia.org/wiki/Efeito_borboleta
Site do filme:
http://www.butterflyeffectmovie.com/2003/
Algumas outras visões e opiniões:
http://www.contracampo.com.br/62/brilhoborboleta.htm
http://cinediario.blogspot.com/2004_07_01_cinediario_archive.html
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/efeito-borboleta/efeito-borboleta.asp

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Xavier+Glauber

“No universo de Glauber, as qualidades do intelectual não estão nas disciplinas do organizador ou na paciência do pedagogo sempre disposto a esclarecer pelo verbo. Estão na coragem da agressão que gera catarse pela violência, que trabalha o inconsciente. Nesse espaço da agressão move-se Paulo Martins. E é nítida a extensão do seu papel no intelectual provocador de Câncer, cujo deboche leva o oprimido à exasperação e à revolta.”

Ismail Xavier, em Glauber Rocha: o desejo da história, no livro Cinema brasileiro moderno.

Ismail Xavier, Glauber Rocha, Glauce Rocha e Jardel Filho,
o Paulo Martins de Terra em transe