sexta-feira, 23 de março de 2007

Vitruvius + Da Vinci

A poeira assentou um pouco, então me dá licença, agora eu tomo a palavra.

No calor da hora tem muita coisa que não adianta falar. Dize-las mais tarde faz bater uma brisa que diz “...sssstupidezzzzzdasssssuaparteeehh...”, que pra quem fala serve como vingança ou ufanismo.

Nenhum dos dois me interessa, só quero lembrar da melhor fatia do bolo, a grande sacada do Dá-20 quando fez um belíssimo e útil desenho. Veja bem: o toscano tinha um traço do cacete (veja seus outros desenhos) e pra dizer a verdade, desenho pra entretenimento é legalzinho, mas é banal perto desse; e desenho de arte serve a si mesmo, às demais pessoas, mas não resolve questões que cozem os miolos científicos há tempos.

Desde já assumo que sou muito do mequetrefe em matemática. Em toda matemática; sem distinção, porque eu não sou disso. Pensando agora, deve ter sido obra celestial eu ter chegado até aqui, academicamente falando. Até os (Da) 20 anos achava uma coisa insuportável, parecia que alguém escarrava na massa cinzenta antes de meter lá um cartaz pesado que vai entortando, girando, e caindo-caindo pousa lá na pança onde ácidos consumiam números, incógnitas, operações. Ato contínuo, DP. Por isso, se eu escorregar me deixe caído onde estou, ria do meu tombo (creia-me; se acontecer vai ser escandaloso. Aí, percebendo, é fácil chutar de canto), mas não ignore o que segue, porque me baseei em outros que expuseram o fato melhor que eu faria inicialmente.

Isso porque, antes de todo o ganha-pães que o falaz Dan Brown espremeu da acne que alguns chamam de cérebro, antes de todo o sobe-nas-tamancas que os cristãos-religiosos desempenharam (dia desses você entende que cristianismo tem pouco de religião, e que mais do que isso nalguma coisa, é tudo, menos cristianismo), antes de todos os tiritares (ou titilares) do conspiracionismo cagão, o homem vitruviano é uma resposta de um cara que dominava o ofício do desenho para um desafio matemático, como aquele, a “conjectura Poincaré”, pela qual recentemente o russo Gregori Perelman seria premiado com Medalha Fields (
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u15058.shtml).

O enigma não era contemporâneo ao “decifra-me ou te devoro”, mas em relação ao Da Vinci também era mezzo vetusto; tinha pelo menos 1500 anos. Formulado na época pelo arquiteto grego Marcus Vitruvius Pollio ( séc. I a.C.), que influenciou a arquitetura da Idade-média, mais especificamente as igrejas da época, que receberam influência das basílicas e templos do arquiteto. Cogita-se que um certo esquecimento da obra de Vitruvius se deu na Idade-média pela falta de formação acadêmica (sempre a maledeta) por parte dos arquitetos da época; a arquitetura era tida como uma espécie de artesanato, por ser apreendida pela instrução de arquitetos experientes. Outra possibilidade é que, com o advento da arquitetura gótica, por não apresentar instruções para abóbadas e arcos em seus textos, Vitruvius tenha sido ligeiramente esquecido.

No referente às informações vitruvianas sobre templos, havia um ponto que afirmava que templos deveriam ser erguidos baseados nas proporções humanas, já que este ser é detentor de proporções divinas. Era necessário, entretanto, que este homem fosse um em determinado; as proporções diferem de um ser humano para outro e variam por influência de postura, patologia, e outros hábitos; era preciso considerar um homem-modelo no qual as proporções adequadas figurassem:

° Face - da ponta do queixo ao topo da testa: 1/10 da altura do corpo;
° Palma da mão - do pulso ao topo do dedo médio: 1/10 da altura do corpo;
° Cabeça - do queixo ao topo: 1/8 da altura do corpo;
° Base do pescoço às raízes do cabelo: 1/6 da altura do corpo;
° Meio do peito ao topo da cabeça: 1/4 da altura do corpo;
° Pé: 1/6 da altura do corpo;
° Largura do peito: 1/4 da altura do corpo;
° Largura da palma da mão: quatro dedos;
° Largura dos braços abertos: altura do corpo;
° Umbigo: centro exato do corpo;
° Base do queixo à base das narinas: 1/3 da face;
° Nariz - da base às sobrancelhas: 1/3 da face;
° Orelha: 1/3 da face;
° Testa: 1/3 da face.

Não bastando a meticulosidade das exigências anteriores, o corpo desse homem-modelo, o quem-me-dera das bibas enrustidas arianas, deveria estar contido nas duas formas geométricas perfeitas, a do círculo e a do quadrado, com os braços e pernas estendidos. Melhor que passatempo Coquetel, não?

Por 150 séculos ninguém fez conta do mistério vitruviano, até a retomada da influência greco-romana na Renascença. Com isso o enigma voltou à moda e os inveterados por Sudoku (ponto cardeal para indicar os pés) da época notaram que a maior complicação não eram as proporções, mas aplicar o uomo perfetto às formas geométricas.

Até Leonardo as bizarrias pictóricas eram em nome do enigma vitruviano; alguns aventureiros centralizavam tanto o quadrado como o círculo num mesmo ponto, o resultado era um frankestein com o tronco do ET e membros do Rodolfo (lembra deles?), apto a praticar tênis enquanto esquia na neve, sem nenhum aparato.

O que todo participante abestado (salve, Tiririca) de American Inventor deveria aprender antes de sua estultícia mata-lo, foi o que Da Vinci tinha e pelo que já era famigerado há muito: encarar um problema aparentemente sem solução por uma outra via, de uma outra perspectiva (a cartilha básica de todo publicitário criativo ou profissional que faz uso intenso da criatividade); a merda na estrada, não é só bosta, pode ser um rico reino de bactérias, pode ser um DVD abandonado do filme de 2006 e/ou 2008 de Ron Howard.

Tambores rufando: Ao invés de centralizar quadrado e círculo, Leonardo encontrou a solução do enigma vitruviano posicionando ambas as formas na mesma base. O passo seguinte foi desenhar o homem-modelo nas proporções do enigma. Com isso ele comprovou que a altura do corpo da figura vitruviana é igual à largura dos braços abertos, e se adequava perfeitamente a um quadrado. Os braços erguidos ao nível do topo da cabeça tocam o círculo e o mesmo acontece com as pernas abertas. Pernas fechadas e braços estendidos tocam o quadrado, formando: o primeiro com o topo da cabeça, a altura do quadrado; o segundo, pela envergadura braçal, a largura do quadrado.
Importa observar também que a área total do círculo é a mesma que a área total do quadrado.
A ilustração de Da Vinci pode ser interpretada também pelo escopo matemático: a figura é um algoritmo matemático pelo qual se calcula o valor do número irracional "phi" (1,618); ou seja, se você tem a área matemática do cérebro esquisita como a minha, e ainda assim quer se meter com cálculos, Da Vinci te deu uma mãozinha. O desenho também pode ser visto em última análise como um símbolo da simetria básica do corpo humano e da relação desta com o universo.

As idéias de proporção vitruviana, também pela contribuição de Da Vinci, influenciaram muito da história da arte. Na pintura, gerando um ideal figurativo de perfeição, e na arquitetura; na Renascença pintores acumulavam as funções de arquitetos, engenheiros e sabe-se lá mais o que (alguns gostam de afirmar que também sobrava tempo pra uma cervejinha com a sociedade secreta), com isso dá pra adivinhar onde iam parar as idéias: em tudo que é construção que influenciou a arquitetura de toda Europa ocidental.

O papo de pentagrama e outras coisas escondidas veio bem depois, quando Leonardo Da Vinci já havia tornado ao pó. Se bem que no caso dos suspostos escondidos, havia sim gente que não perdeu muito tempo em se aproveitar do desenho davinciano. A coisa veio por intermédio de nefelibatas, ocultistas, paranóicos e oportunistas que, ao invés de olhar para as fezes de uma outra perspectiva, viam excremento em todas as perspectivas.g


As últimas ilustrações são de um livro chamado "De Philosophia Occulta" (Livro II, Cáp. 27 - Paris, 1531), de um autor renascentista de nome Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535. http://pt.wikipedia.org/wiki/Heinrich_Cornelius_Agrippa_von_Nettesheim), mago, astrólogo, alquimista e escritor de ocultismo. Essas sim são ilustrações com teor ocultista, que por mais que pareça seguir o enigma vitruviano, não o fazem, mas talvez sofram influência ou se inspirem - Da Vinci nasceu em 1452 e morreu em 1519, é possível que tenha sido capaz de mais um feito: influenciar muito rapidamente sua própria época, levando-se em conta que fama e obras não se propagavam com a velocidade de hoje. E claro, não eram feitas pra durar 5 minutos.


Texto reinterpretado do blog http://dwd3.blogspot.com/2007_01_01_archive.html e acrescido de muita coisa na web e de conhecimentos pessoais. Também http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_da_Vinci