terça-feira, 29 de maio de 2007

Ira - "Invisível DJ"

Estava ouvindo os três primeiros discos do Ira! E dei uma passada no site deles pra ver se tinha algo do disco novo "Invisível DJ"; tinha o disco todo em razoável qualidade – quem destina os ouvidos exclusivamente aos mp3 talvez até espirre um “muito boa qualidade!” –, deu-se o acidente.

Olha, é e não é o Ira! de 1985/1986. O não ser todo mundo já deve saber, de tanto que a fãzada torceu o bedelho. O ser é que por mais que se discorde, o Ira! é uma das bandas rock-pop safra 80, que menos se descaracterizou no passar dos ânus. A banda quis apontar pra uma maturidade, trilhou um caminho de pedras, deixando cair nele aquela jovialidade que dava fôlego a tudo que fazia (e pra muitos isso custou os olhos-da-cara), ficando farto do Rock’n roll e buscando outras batidas.

De Mods caíram na MTV e deram uma contribuição extra para o mundo estar ainda mais evacuado do que precisa junto com outros músicos em versão acústica. Esse cruzamento Ira!-MTV não deixa de ser curioso também, pois faz lembrar de direções do rock dos anos 90 até hoje: quantas bandas de inclinação e trejeitos Mods surgiram depois deles, mas todas elas eram Mods na forma (Oasis e britpops) ou são Mods na Unique selling proposition (Strokes, Kaiser Chiefs). Bem, não dá pra esquecer dos EMOs, os Mods de hoje, com pouquíssima semelhança com o movimento que tinha The Who: os EMOs são Mods no credo.

Pra EMO o disco novo do Ira! pode soar como uma coisa de outro plano astral. Ainda existe boa guitarra (que não é crua, anda de mãos dadas com outras sonoridades, procura saídas simples, mas hoje pouco habituais, e é rock’n roll, e é legal – posso me arrepender disso depois) e boa cozinha no mundo pop-rock nacional. O Nazi é sempre o Nazi.

A faixa 1 pode surgir na novela um dia. Malhação, talvez. Tem gente que vai achar esquisita a 2, mas ela tem qualidade. No geral o CD inclina mais pro rock do que pro pop, faz lembrar de leve um U2 que não quer saber do altruísta-poeta, esbarra no canastrão (mas é pop, então pode), tem músicos bem mais competentes, letras melhores, e na musicalidade parece caber qualquer adendo, como Beatles (que quié isso memo?) e uns barulhinhos a mais vindo de outras épocas a mais.
Ah, e a faixa 11 “O candidato” parece protesto tipo Titãs, sem os adjetivos de baixo calão, mas com a guitarra do Scandurra: o instrumental parece justificar a entrada no disco, mas um tiquinho de bom senso estapeia dizendo que nem assim presta. O melhor do disco é que ele me provocou a vontade de ouvir pela 1.077ª o disco do senhor Michael James Ness (que também pode dizer “Nasci em 62” – do dia 3 de abril, em Machachuches), o “Sex, Love and Rock 'n' Roll”.

Pronto. Isso equivale a você me visitar com flores no hospital após a um acidente.

Acidente que leva pra hospital não acontece todos os dias, nem a toda hora, que isso fique bem claro. g

O site: http://grupoira.uol.com.br/novo/index.asp

sábado, 12 de maio de 2007

Ilíada+Simone Weil: a força e a violência no homem, e a graça

O verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro da Ilíada é a força. A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, a força diante da qual a carne do homem diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito humano aparece modificado por suas relações com a força, como que varrido, tornado cego, pela própria força que ele imaginou que poderia controlar, deformado pelo peso da força a qual ele se submete. (...)

Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...

Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.(...)

Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)

Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.g


Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado.


Traduzido para o português por Ruy Gardnier, e publicado em:
http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm#1 , a partir de um artigo de Tag Gallagher, origninalmenete publicado em Cahiers du sud, XIX, 230, December 1940.
O artigo de Weil citado por Gallagher "A Ilïada ou O poema da força" está publicado na compilação Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizada por Ecléa Bosi e editada pela editora Paz e Terra, Rio de Janeiro. A segunda edição é de 1996.