quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Em quadros - II

“Casa de Alice” (Idem – BRA – 2007 – Chico Teixeira) – Dramaturgia cuidadosa e incomum no Brasil, aliada a um trabalho de elenco preciso, mas intenso. Mais uma vez a estrutura familiar em exposição. Se existe uma coisa altamente resistente, é a estrutura familiar; sobrevive até a perversão de afeto. Quando a estrutura não importa mais, ainda assim ela renova-se por relações inter-familiares reduzidas, mas quando se procura relações fora dela, o que perde importância atinge o esquecimento, aí a estrutura se fragmenta. O filme é cru, e com isso, construir um olhar sobre as mazelas mais que a porção de beleza que existe em relações humanas, ainda que sem a atmosfera, causa a impressão de um filme de horror. Não é que o filme não contenha beleza, e o problema não é que não prime por ela, mas é que a beleza e certa virtude que ela traz consigo, vai sendo sufocada pelo que odiamos. Mas este é um problema do filme ou um problema freqüente da realidade familiar contemporânea fora da tela, porém na tela? Não ouso torpedear um possível pessimismo no filme. Ouso provocar a profunda busca de um realismo como escora de qualidade fílmica, mas que quando a sede por beleza artificial injeta poesia no realismo, veta questões incômodas que estão na vida, e por isso o realismo, que traria questões mais valiosas para vida, vira somente um agrado a mais para a vaidade humana: o filme não atinge a vida embora extraia dela todas as suas possibilidades; o cine-egoísmo de muitas obras-primas cinematográficas, todavia irrelevantes para a vida. Deste mal “Casa de Alice” não padece, mas de outros que podem ser aperfeiçoados, e disso não se envergonha.


“Trouble every day” (Idem – FRA – 2001 – Claire Denis) – Para que o corpo, se o humano possui intelecto, vontade, sentimento, espírito? Talvez, porque nós, em dimensão física, não somos capazes de nos tocar intimamente tão facilmente pelas nossas porções metafísicas, somente (sem corpo o cinema seria o que?). Nas relações o corpo é como que o filtro de outro corpo em nossa intimidade, para que tão somente o metafísico seja o toque na mais profunda intimidade. Por isso que sexo por si mesmo precisa de amor, desejo e intelecto. Desejo, quando provém de um, corresponde a este um, mas amor faz este impulso ser para outro, ou melhor, para ambos; já o intelecto nos baliza no reconhecimento de amor e desejo como princípio e meio. Faltando amor e sanidade, mas excedendo o limite do desejo, temos a proposta do filme. É como se sem amor só houvesse o ódio, mas no filme este é impelido por um extradesejo; todas engrenagens de uma maquina humana de destruição. Sexo e morte. Daí, todo aquele que penetra na zona de intimidade de um insano, se torna vítima. Nas relações o corpo fornece inúmeros setores de proximidade da intimidade, mas há o resguardo que o desconhecimento do além corpo concede na quase totalidade das situações, caso contrário, a vida seria apenas intimidade. A insanidade do filme cega para isso, e toda forma de vestígio de intimidade vira o meio para explodir o desejo em carga máxima rompendo limites: se o desejo é o um diante do outro, o extradesejo é apenas o um, e o outro só existindo no desejo do um (por isso que nesta situação o outro só dura enquanto palco do desejo; o outro não pode pedir o um, por isso deve ser destruído). O amor quando acessa a intimidade do insano, evita os males do insano. Macabro, dirão, mas o exame mais profundo de comportamentos que se julgam corriqueiros não dirão muito diferente. Num olhar macro (e menor) pela montagem/edição do filme, numa primeira porção desfilam por fragmentação variadas relações humanas (casamento, trabalho, amizade, proteção, manutenção), nos fazendo saber do que ocorre e que algo mais ocorre; então chega uma explicação numa conversa, como que iluminando o indetectável; segue o mergulho numa estabilidade de reconhecimento de circunstância que é quase nada diante de um aprofundamento sem retorno no terrível que não podemos deter – além do intelecto, insanidade e inalcançável por qualquer vontade. Mas resta o amor.


“Chega de saudade” (Idem – BRA – 2007 – Laís Bodansky) – Filme belo, filme alegre, sensível, de olhar delicado, mas sobre algo não todo suave. Impressiona mais do que “Bicho de sete cabeças” este multiplot, dentre os quais um se destaca, por expor o desejo, a paixão e o interesse niveladores de sexos. Desejos diante de mesmas questões, provindo de qualquer sexo, apresentam fragilidades e fragilizações. Por isso niguém é melhor no que quer, mas no que é - e quem são os melhores? Importa certa beleza que há em igualdades em meio a diversidade, isso vai além de curiosidades e saudosismo. O feminino demole o feminismo, e o masculino o machismo, quando a paixão demole barreiras ideais devido à mágoas – e às vezes nem é preciso tempo. O ser humano é hábil em descaramento e em extrair de muita coisa secundária valor e alguma beleza (o que não é o caso do filme). Bravo, Laís.