terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Ensaio sobre a cegueira

Certa vez um episódio de “The twilght zone” trouxe um personagem míope que era um obstinado leitor, interpretado por Burgess Meredith. A personagem da esposa, era dura com o protagonista, impedia o desfrute da leitura; o chefe dele indignava-se, pois trabalho, na empresa, deve ter sempre seu lugar e nele estar inabalável. Um apaixonado e sedento pelo saudável hábito de ler, afrontado pela incompreensão dos que viam a leitura como coisa menor. Farto da repressão, em pleno horário de expediente em sua agência bancária, se refugia no cofre para poder ler. Então, explosão; hecatombe no mundo externo ao cofre, agora tornado em bunker preservador do protagonista. Após um primeiro exame do exterior, ele sai para explorar as ruínas do mundo, lamentando sua solidão de último vivente sobre a Terra. Depois de vagar, tem reacendida a esperança quando se depara com a biblioteca pública que expurgou livros devido ao cataclismo. Cessa a solidão, tudo o que ele mais amava estava à disposição; livros e tempo, sobretudo para consumir os primeiros. É então que descuidando do frágil sustento de seu conforto existencial, um movimento de cabeça faz seus óculos caírem do rosto e as lentes se espatifarem na escadaria da biblioteca: no espaço inicialmente tido como pouco proveitoso, a surpresa da descoberta se esvai, o importante que se extrai dele é tornado em nada; pouco importa o espaço, o tempo prevaleceu sobre ele – e o homem é espaço sujeito ao tempo.

“Ensaio sobre a cegueira” funciona como que com os sinais do episódio de 1959: estória moral ao seu modo, o bailar de virtudes e cinismos humanos entre a perdição da humanidade, redução do valor espacial, o tempo se impondo sobre o espaço. No episódio “Time enough at last”, entretanto, o que se abate sobre o espaço e o altera é espacial (devastação provinda da guerra fria), mas fará o tempo prevalecer ao fim. Em “Blindness”, se dá o inverso; o tempo se abatendo sobre o espaço. Sim, a tal epidemia não é tanto virótica ou bacteriana, mas eventual; um acontecimento sem origem, que chega a maneira dos efeitos temporais, que se vai sem aviso, mas que no filme concede ao espaço vitória. Nosso tempo se abatendo sobre o homem contemporâneo.

Questão que sobressai é a da proeminência e persistência do espaço, e até que ela se consolide, a da diminuta representatividade que o espaço veio tendo até a consolidação dela. Também o aceno moral da possibilidade de passar pelo que induz sofrimento sem afetar caráter, pois a argamassa dos tijolos espaciais (na mentalidade moderna, sobretudo, mas bastante presente na pós) é a humanidade. E outra mais: as marcas espaciais sobreviventes ao tempo, mas que em novos espaços (corpos), não valem muito (carregam outra significação – ou significação nenhuma) – pensemos nos combatentes da Segunda Grande Guerra e seus descendentes; um deles, por exemplo, soldado norte-americano no último conflito na palestina: os horrores antigos, espacialmente marcados nos ascendentes familiares, não funcionam como contenção da voracidade do descendente ao chacinar palestinos.

Nas diversas questões estão variados espaços. Destes espaços resistentes, o principal é o civilizado, como nos indicam os planos iniciais, e aos cegados de “Ensaio”, este mundo vai perdendo importância. Os demais seres próximos aos cegados, então, vão sendo reduzidos ao ínfimo.

Mecanismo semelhante vigora na cegueira do filme. A temporalidade na cegueira (pois ela é tempo, e temporária) é algo que chega e inunda os olhos, se impondo sobre a visão. Ela assume a espacialidade na visão, e sobre ela também se dará o sobrepujar espacial.

Todavia, a cegueira para os seres gera fatores de outra ordem. Para quem há muito se fundamenta no ver, a cegueira é um solavanco para dentro de si mesmo; condição que se dá pelo ser existencialmente egoísta, personagem cegado ou não. Outro cego é um obstáculo tanto quando o batente da porta. O eu não ecoa, não importa o espaço. Quem vê, pode fingir que vê, pode forjar inclusão social; quem é cegado, precisa se reduzir a insignificância particular. Cada um está sempre em si, não se deixa transbordar. A visão de quem vê raramente é periférica, a do cegado não ultrapassa o próprio corpo.

Porém, não é o outro, nem o espaço, nem o tempo que faz pessoas egoístas. Tão somente o tempo (dês-civilizado), no entanto, expõe o egoísmo no homem; o espaço é onde se viabiliza o egoísmo. O filme então se revestirá do que determina seu espaço como expressão de um tempo-momento, o filme passa a ser, então, espaço.

O emprego de reflexos sobre superfícies, talhados pela fotografia, não afetam personagens. Os reflexos estão disponíveis ao espectador, portanto; são falha de percepção dos personagens em relação ao espaço que os envolve. O mundo é oferecido pela visão, e personagens não percebem o espaço envoltório; falido o olhar de uns, está disposta a falência aos espectadores, que, ou ignoram a circunstância proposta de falência do olhar, ou assumem sua própria falência de olhar (uma proposição que não vai dar em nada, devido à embalagem do produto).

Mas se assume que o olhar dos realizadores falha? Ponto crucial: o conto moralizante – e não moralista – nunca assume que seu próprio olhar falha (como a crítica, que nega o que é fora de seus padrões, mesmo sob a escusa de que quer posicionar seu leitor perante o objeto – ora, se ela pode posicionar, é porque o olhar, pretensiosamente, não falha), logo, se o olhar é falho generalizadamente, ninguém está imune a cegueira, nem o filme, nem quem filma. Por isso que há itens no filme que nada mais serão que maneirismos, bastante fragilizadores do filme, infelizmente; também o preço a pagar por urgência mercadológica/de projeto/de desafio numa transposição de obra literária.

O olhar de todo ser humano está falido, porque este, mesmo vendo, pouco reage ao que vê. Não assumir é rejeitar a visão. Sob o peso da responsabilidade moralizante, o filme também vai relutar em assumir a integralidade de sua visão falha: ele incorpora a falha de visual em reflexos e cegueira branca, mas quando a cegueira se vai, o mundo não apresenta o impacto da grandeza eventual. Em decorrência, desperdiça-se oportunidade de indicar caminhos para a inauguração de novos olhares (e justificar o “Ensaio sobre” no título em português; “Blindness” é mais apropriado ao filme), ousadamente contrariando a noção, como dizer, de Fim da História que muitos iludidamente carregam em si. Preferiu-se reunir coragem para enfrentar a pecha de pessimismo.

Se aposta então, na idéia de que o colapso generalizado não erradica virtudes nem beleza. As virtudes do ser aparecem nas relações humanas, somente; a beleza, entre extremos, e ela escapa do tempo, prevalece no espaço degradado, mas onde ele já não oferece perigo (a casa da protagonista). É possível se acostumar à hecatombe porque a beleza humana é possível, a reconstrução pode vir depois. Há coisas mais valiosas para que se atentar (mesmo sem a visão – o desespero pela cegueira e o em que dela resulta vai sendo tornado uma leviandade). O principal será reconhecer e usar estas coisas. O conformismo é que é fatal, e nada mais. Frustrante Polyana. O problema há no descompasso da poesia, alegoria, ficção, arte, entretenimento, ainda que não sejam conformistas, com a vida, com o ser humano; tudo acaba em artificialidade, e não deixa de ser cegueira. Isso não há delicadeza que conserte.

O plano final: a cegueira depende de como se olha, ou melhor, de para onde se dirige o olhar. A cegueira-evento faz o indivíduo concentrar seu olhar em (e depois voltar para) si mesmo, e oferece isto por colapso da civilização (porque todo filme de fim do mundo precisa oferecer um colapso). Cada vez mais fácil de crer que advirá ao homem o colapso, insiste o filme, mas que depois do recuo da cegueira, tudo está fadado a voltar a sua regularidade – então o filme não termina, se vai da gente, dizendo que sua mola-mestra é coisa menor. Quem perguntar se precisava do estardalhaço com a cegueira tem lá sua razão, embora não possa negar que o filme tem propostas interessantes.

Nada de estrelas ou desenhozinhos. Aprovação: 58,9%

"Time enough at last", EM 3 PARTES:
http://br.youtube.com/watch?v=7hf7RcufrDk&feature=related
http://br.youtube.com/watch?v=VyvlX2jX9xo&feature=related
http://br.youtube.com/watch?v=UycqyhLi-F0&feature=related

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

César Charlone

"Não posso ficar feliz em um país que gasta o dinheiro dos contribuíntes em filmes que são vistos por apenas 70 mil pessoas. É uma política que está errada - precisamos gastar tanto em exibição quanto em produção. Se a pessoa quiser fazer filmes apenas pra mostrar aos amigos, que o faça com as próprias economias, não com recursos do contribuinte. O dinheiro deste precisa ter um retorno, na forma de filmes que sejam vistos. Parabéns aos caras que piratearam Tropa de Elite, pois isto fez a obra ser vista por toda população. A pirataria é a resposta aos preços abusivos dos cinemas e às dificuldades de acesso as salas de exibição. O cinema precisa ir até o público. Não adianta retomar o cinema para alguns poucos curiosos. E o processo começa na escola: quem estudar autores como Guimarães Rosa também deve estudar a obra de cineastas como Nelson Pereira dos Santos. Até pra ter sendo crítico e ser capaz de analisar o que se vê no Youtube, a garotada precisa ter um professor de história do cinema que já tenha analisado Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Jabor ou Fernando Meirelles. Por que não temos políticas práticas para a exibição de cinema? Por que não temos salas municipais de cinema? Como uma democratização desses espaços e da própria exibição, a população teria acesso a filmes de outras culturas, além da produção massificada encontrada nos shoppings e na TV. Além de um processo de produção afiado, é disso que precisamos agora."

César Charlone é uruguaio radicado no Brasil desde 1970, diretor de fotografia (em filmes como "Feliz ano velho", "O homem da capa preta", "Cidade de Deus", "O jardineiro fiel" e"Ensaio sobre a cegueira") e diretor do filme "O banheiro do papa". IMDB: http://www.imdb.com/name/nm0153263 . Trecho extráido da entrevista concedida à revista Zoom Magazine, edição 108 - Ano 9.