O verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro da Ilíada é a força. A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, a força diante da qual a carne do homem diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito humano aparece modificado por suas relações com a força, como que varrido, tornado cego, pela própria força que ele imaginou que poderia controlar, deformado pelo peso da força a qual ele se submete. (...)
Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...
Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.(...)
Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)
Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.g
Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado.
Traduzido para o português por Ruy Gardnier, e publicado em: http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm#1 , a partir de um artigo de Tag Gallagher, origninalmenete publicado em Cahiers du sud, XIX, 230, December 1940.
O artigo de Weil citado por Gallagher "A Ilïada ou O poema da força" está publicado na compilação Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizada por Ecléa Bosi e editada pela editora Paz e Terra, Rio de Janeiro. A segunda edição é de 1996.
Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...
Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.(...)
Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)
Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.g
Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado.
Traduzido para o português por Ruy Gardnier, e publicado em: http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm#1 , a partir de um artigo de Tag Gallagher, origninalmenete publicado em Cahiers du sud, XIX, 230, December 1940.
O artigo de Weil citado por Gallagher "A Ilïada ou O poema da força" está publicado na compilação Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizada por Ecléa Bosi e editada pela editora Paz e Terra, Rio de Janeiro. A segunda edição é de 1996.
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