

Questão que sobressai é a da proeminência e persistência do espaço, e até que ela se consolide, a da diminuta representatividade que o espaço veio tendo até a consolidação dela. Também o aceno moral da possibilidade de passar pelo que induz sofrimento sem afetar caráter, pois a argamassa dos tijolos espaciais (na mentalidade moderna, sobretudo, mas bastante presente na pós) é a humanidade. E outra mais: as marcas espaciais sobreviventes ao tempo, mas que em novos espaços (corpos), não valem muito (carregam outra significação – ou significação nenhuma) – pensemos nos combatentes da Segunda Grande Guerra e seus descendentes; um deles, por exemplo, soldado norte-americano no último conflito na palestina: os horrores antigos, espacialmente marcados nos ascendentes familiares, não funcionam como contenção da voracidade do descendente ao chacinar palestinos.
Nas diversas questões estão variados espaços. Destes espaços resistentes, o principal é o civilizado, como nos indicam os planos iniciais, e aos cegados de “Ensaio”, este mundo vai perdendo importância. Os demais seres próximos aos cegados, então, vão sendo reduzidos ao ínfimo.
Mecanismo semelhante vigora na cegueira do filme. A temporalidade na cegueira (pois ela é tempo, e temporária) é algo que chega e inunda os olhos, se impondo sobre a visão. Ela assume a espacialidade na visão, e sobre ela também se dará o sobrepujar espacial.

Porém, não é o outro, nem o espaço, nem o tempo que faz pessoas egoístas. Tão somente o tempo (dês-civilizado), no entanto, expõe o egoísmo no homem; o espaço é onde se viabiliza o egoísmo. O filme então se revestirá do que determina seu espaço como expressão de um tempo-momento, o filme passa a ser, então, espaço.
O emprego de reflexos sobre superfícies, talhados pela fotografia, não afetam personagens. Os reflexos estão disponíveis ao espectador, portanto; são falha de percepção dos personagens em relação ao espaço que os envolve. O mundo é oferecido pela visão, e personagens não percebem o espaço envoltório; falido o olhar de uns, está disposta a falência aos espectadores, que, ou ignoram a circunstância proposta de falência do olhar, ou assumem sua própria falência de olhar (uma proposição que não vai dar em nada, devido à embalagem do produto).
Mas se assume que o olhar dos realizadores falha? Ponto crucial: o conto moralizante – e não moralista – nunca assume que seu próprio olhar falha (como a crítica, que nega o que é fora de seus padrões, mesmo sob a escusa de que quer posicionar seu leitor perante o objeto – ora, se ela pode posicionar, é porque o olhar, pretensiosamente, não falha), logo, se o olhar é falho generalizadamente, ninguém está imune a cegueira, nem o filme, nem quem filma. Por isso que há itens no filme que nada mais serão que maneirismos, bastante fragilizadores do filme, infelizmente; também o preço a pagar por urgência mercadológica/de projeto/de desafio numa transposição de obra literária.
O olhar de todo ser humano está falido, porque este, mesmo vendo, pouco reage ao que vê. Não assumir é rejeitar a visão. Sob o peso da responsabilidade moralizante, o filme também vai relutar em assumir a integralidade de sua visão falha: ele incorpora a falha de visual em reflexos e cegueira branca, mas quando a cegueira se vai, o mundo não apresenta o impacto da grandeza eventual. Em decorrência, desperdiça-se oportunidade de indicar caminhos para a inauguração de novos olhares (e justificar o “Ensaio sobre” no título em português; “Blindness” é mais apropriado ao filme), ousadamente contrariando a noção, como dizer, de Fim da História que muitos iludidamente carregam em si. Preferiu-se reunir coragem para enfrentar a pecha de pessimismo.
Se aposta então, na idéia de que o colapso generalizado não erradica virtudes nem beleza. As virtudes do ser aparecem nas relações humanas, somente; a beleza, entre extremos, e ela escapa do tempo, prevalece no espaço degradado, mas onde ele já não oferece perigo (a casa da protagonista). É possível se acostumar à hecatombe porque a beleza humana é possível, a reconstrução pode vir depois. Há coisas mais valiosas para que se atentar (mesmo sem a visão – o desespero pela cegueira e o em que dela resulta vai sendo tornado uma leviandade). O principal será reconhecer e usar estas coisas. O conformismo é que é fatal, e nada mais. Frustrante Polyana. O problema há no descompasso da poesia, alegoria, ficção, arte, entretenimento, ainda que não sejam conformistas, com a vida, com o ser humano; tudo acaba em artificialidade, e não deixa de ser cegueira. Isso não há delicadeza que conserte.
O plano final: a cegueira depende de como se olha, ou melhor, de para onde se dirige o olhar. A cegueira-evento faz o indivíduo concentrar seu olhar em (e depois voltar para) si mesmo, e oferece isto por colapso da civilização (porque todo filme de fim do mundo precisa oferecer um colapso). Cada vez mais fácil de crer que advirá ao homem o colapso, insiste o filme, mas que depois do recuo da cegueira, tudo está fadado a voltar a sua regularidade – então o filme não termina, se vai da gente, dizendo que sua mola-mestra é coisa menor. Quem perguntar se precisava do estardalhaço com a cegueira tem lá sua razão, embora não possa negar que o filme tem propostas interessantes.■
"Time enough at last", EM 3 PARTES:
http://br.youtube.com/watch?v=7hf7RcufrDk&feature=related
http://br.youtube.com/watch?v=VyvlX2jX9xo&feature=related
http://br.youtube.com/watch?v=UycqyhLi-F0&feature=related
2 comentários:
ang
vc acredita que o Fernando (e equipe) tenha dado ao filme uma dimensao poderosamente cinematografica?
alem de sua analise profunda sobre visao/cegueira, o que faz dele um filme diferenciado?
eh mais um? fez diferença?
abs
Poderosamente não, mas deu uma dimensão legal. Isso que achei uma desfeita de boa parte das críticas negativas, que achou o filme uma tremenda porcaria, não sendo.
Pra mim a questão é que poderia fazer baita diferença se não se esquivasse de coisas que não têm muito lugar no mercadão, e que curiosamente o filme abriu caminhos para elas em si.
Não falo de cinema de autor, mas me parece que o Meirelles não firma posição em questões autorais, encarando a crítica, mesmo, com justificativa dramática na ponta da língua e presente na tela. Fica uma delicadeza no trato quando pede firmeza, pede certeza. Isso não é contrário ao filme pra fazer grana.
O filme fez alguma diferença, pra mim, mas para seu espectador preferencial, de entretenimento, pode ser que não. O filme com proposta de massa, tem de pensar em massa, não no "se um entender, tá legal". Isso que é triste, pois é um bom filme que seria melhor se ultrapassasse os limites que seu público impõe pelo gosto. O filme teve condições disto, mas não foi além. Tava com a faca e o queijo, mas deu só um dos dois e quem pegou já se esqueceu do presente.
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