quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A cidade alicia (tentei evitar)

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As séries nacionais trazidas pela HBO até o momento contém cinema. Nesta crescente vertente de produção, cabem distinções, pois na variedade, parâmetros começam a surgir. Por exemplo: “Mandrake”, série intoxicada de pompa e embriagada de futilidade é demasiado produto, e o que ressalta é técnica de realizador em gerar audiovisual (ostentação para entreter); “Filhos do carnaval” é tentativa de agrado de públicos, ousou mais qualidade. E agora “Alice”.

Sim, “Alice” é produto, tem comprometimento com audiência, mas alcança outro patamar. Não é série, não é cinema, como os autores/realizadores afirmam na propaganda no canal por assinatura. Por seu primeiro episódio, a série alcança êxito dramático, técnico, de realização e tem toque autoral. Mas não é cinema de autor, primeiro porque cinema não é coisa de um, segundo porque “Alice” não é puramente cinema. Um híbrido? Talvez. Certamente, com teor de novidade para a TV.

É interessante observar no primeiro episódio, “Pela toca do coelho”, o que opera Karim Aïnouz (um dos diretores da série, junto com Sérgio Machado, Jonny Araújo e Márcia Faria. A Gullane co-produziu). Considerando seus “Madame Satã” e “O céu de Suely”, a precisão do filmar resulta em economia de tempo, mesmo na duração reduzida de episódio. O cinema de Aïnouz é de minimização presencial de trama e tira bastante proveito do tempo. Estando presente a trama, ela é desenvolvida em instantes preciosos. Entre estes, nos intervalos, que são maiores, cultiva-se cenários, desenha-se o ambiente da série, que é não o da megalópole-sociedade hostil, mas o da avalanche de possibilidades óticas, sônicas e tácteis, o da inter-relação de formas, cores, luzes e sólidos. Um labirinto onde Alice precisa se encontrar em si mais do que se localizar onde está.

Hostil é o que carregamos em nós, mas agimos como se o ambiente que mãos humanas empilharam nos induzisse a setorizar uma angústia, para usar um termo aliado à multiplicidade. Não é a poluição, a aglomeração ou o trânsito, mas o que o homem impele e vai implicar algo nele. Os que não são da megalópole, quando chegam, vão receber o impacto que aviva o que o humano traz consigo. Mas seja miséria ou virtude, conter sua expressão – ou ignora-la, entorpecendo-se – é sinalizar o local onde as construções devem desabar. Logo, importa é o que decidimos ser em meio à hiperatividade e ao incessante; este ambiente fica opressivo quando não se corresponde ao ritmo do que a concentração de humanidade estipulou em seu entorno; ritmo simplesmente pede definição, no caso, de nós mesmos devemos ser. O que ritmo megaurbano cobra, se não receber, concede a paga da hipocrisia. Pela intensidade, o que a megalópole faz no homem vem desavisado, e Alice é pega sem aviso.

Num táxi, indo ao aeroporto para que possa retornar a Palmas, a megalópole envolve Alice para expor quem/o que ela é/detém. Primeiro o trânsito, e a dor da ausência do pai ferve. Alice quer ar, mas a tecnologia no carro está fora de operação. Alice abre o vidro, e para quem vive na megalópole extradiegética, acostumado ao que vê como indício da hostilidade metropolitana na forma do assalto, é pego de surpresa com a negação do fatalismo que se supõe companheiro de todas as horas. Quem executa a virada na vida de Alice é ela mesma se deixando envolver pela demanda da cidade, não é um assalto ou uma enchente que faria isso; Alice tampouco se conforma à ambulância e ao táxi. A livre-escolha humana, ou arbítrio, quer se conceba livre ou não, está em ação, e no primeiro episódio tem muita relevância. A avalanche humana em dados momentos chega antes que o tsunami do mundo. Realismo consciente.

Tendo mergulhado na cidade para atravessar a noite e para perder-se, só chegando o dia Alice pode encontrar seu caminho. Mas há uma bipolaridade disponível a Alice: não tendo lar em São Paulo, e não podendo acessar o lar de alguém, só lhe resta acessar o trabalho de alguém, visto que também não possui trabalho seu para servir de refúgio - São Paulo em sua forte prisão. Alice procura o brechó que pertence à tia numa galeria paulistana. No trajeto diz a si mesma não se arrepender dos atos noturnos, um deles, uma traição; “Não sinto culpa.”, ela diz, exultante, resoluta. Adentra então a galeria, procurando o Brechó Christiania; seu encontro com ele se dá num plano em que uma coluna oculta parte do nome na fachada do estabelecimento, resultando na leitura do termo como “Christi”. Ali se encontra a tia. Na troca de palavras, escapa uma breve dor num “me ajuda”, de menor intensidade a exultação anterior.

Não sabemos ainda se Alice será uma personagem que exibe uma imagem de si para o mundo e por trás dela existirá a Alice genuína, uma personagem que se resguardará em sua descoberta. Mas a interpretação da cidade em “Alice” já cede sinais de que o que a megalópole ergue do íntimo humano, vai criando camadas até o âmago, onde quem somos na verdade está. Embora não pareça, o ser humano é mais forte que a cidade. Por isso, olhos atentos não apenas as camadas banais, mas aos detalhes que pulsarão em menor destaque. De ambos se produz o que as séries da HBO alegam ser, dramáticas. Isso pede olhos não só para entretenimento. Ótimo.

***

Nada de estrelas ou desenhozinhos. Aprovação: 77,9%

Se você não é assinante do canal, pode assistir ao primeiro episódio aqui:
http://www.alice-hbo.tv

Datas e horários de exibição dos episódios nos canais HBO:
http://www.hbo-br.tv/sinopsis.asp?ser=134&prog=HBE185052

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