sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A fúria e a razão de Moore

"Acho que o cinema na sua forma atual é muito prepotente. Ele nos dá comida na boca, o que dilui nossa imaginação cultural coletiva. É como se fôssemos passarinhos recém-saídos dos ovos olhando pra cima, com nossas bocas bem abertas, esperando que Hollywood nos alimente com um vômito de vermes. O filme de Watchmen parece mais vômito de vermes. Eu, pelo menos, cansei de vermes."

"Há três ou quatro empresas agora que existem somente para criar não quadrinhos, mas storyboards para filmes. Pode-se dizer que a única razão pela qual a indústria dos quadrinhos ainda existe é essa, para criar personagens para filmes, jogos de tabuleiro e outras mercadorias. Os quadrinhos são uma espécie de horta onde crescem franquias que podem ser rentáveis para a indústria cinematográfica debilitada".

Alan Moore, quadrinista, autor de HQS como "V de vingança", "Watchman", "Miracleman", "Do inferno", "A liga extraordinária" e trabalhos emblemáticos com personagens das majors norte-americana, como Monstro do Pântano e Batman.

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Moore tem razão no que diz, mas em parte.

Certamente Moore fala de uma parcela do cinema, a qual consome, e tem razão no que diz. A parcela do cinema em questão é aquela vereda preferencial do cinema de entretenimento: contar uma boa estória. Isto corresponde a roteiros com tramas e subtramas criativas, personagens que não vão muito a fundo em questões existenciais (para não exigir demais da humanidade que deseja apenas se ver no lugar dos persoangens em situações seguras para o físico, mas que pelo sonho são ousadas), clímax preciso e intenso, imagens que dentro de um padrão de verossimilhança sejam maravilhosas (daí a sede por efeitos especiais), áudio que seja cativante e envolvente. Se pegarmos na literatura os contos de horror, serão aqueles que primam pela atmosfera, e por isso trata-se de uma arte de envolver o leitor numa teia de imaginação em que o sobrenatural espreita na forma de horrores primevos; é uma arte da descrição e sustentação climática por parte dos autores - por isso Edgar Alan Poe e H. P. Lovecraft. Esta é o tipo de arte preferido das grandes produções Holywoodianas. O problema é que a indústria do entrtenimento fez disso produção em massa, e esterelizou a potencia da arte: a arte precisa ser consumida rápido para se consumir mais dela. Eis a razão de Moore.

No que ele erra é sobre a grande produção cinemotográfica mundial (e que Holywood também produz, diga-se), que prima por ser relevante. É arte, mas não necessariamente filme de arte (que pra muita gente doutrinada no catecismo da indústria é o filme chato, por exigir mais da humanidade do espectador). Corresponde ao cinema que se esmera em ser boa experiência, não apenas boa estória, e traz consigo uma gama de artifícios que concede ao espectador visões para e sobre a vida, através de esmero narrativo, alegorias, gramática e sintaxe fílmica, beleza funcional, interferência na vida, incremento humano, e muito, muito mais, inclusive os artifícios usados pela indústria de entretenimento - cada filme tem um valor único e valores subjacentes a serem descobertos. No citado exemplo da literatura de horror, os contos fantásticos, góticos ou não, que funcionam como crítica, filosofia, arte, emblema de época; vale tudo em nome das intenções autorais - por isso Oscar Wilde, William Beckford, Jorge Luis Borges. O problema é que certos autores, gênios até, às vezes são dotados de pompa em demasia. Moore generalizou.

Três ou quatro editoras são notadamente fábrica de idéias para o esgotamento criativo da indústria de entretenimento. Outra generalização. Existe muita HQ na atualidade sendo feita desconsiderando a via para o cinema, tanto é que trata de temas que não se enquadram no Parental Guidance da indústria. Moore parece estar esquecido de que HQ é uma arte tão sequêncial quanto o cinema, e tem proximidade com o cinema: uma estrada atravessa duas cidades.

A prepotência, em princípio, não está na arte, mas no mercado, no entretenimento que só quer consumir mais dele mesmo. A arte usa de artifícios no jogo de manter espectadores/leitores diante de si na contemplação benéfica à humanidade. Ela manipula e pede manipulação dentro dum período em que vigora o lúdico, mas cede de si um retorno a quem lida com ela.

Até certo ponto não há ser humano na face da Terra livre de um mísero traço tirânico. Terrível constatação?

Um exemplo é a declaração de Moore, que pela generalização, impõe a quem a medida de sua diatribe é injusta.

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